Os números de 2014

Os duendes de estatísticas do WordPress.com prepararam um relatório para o ano de 2014 deste blog.

Aqui está um resumo:

Um bonde de São Francisco leva 60 pessoas. Este blog foi visitado cerca de 1.100 vezes em 2014. Se fosse um bonde, eram precisas 18 viagens para as transportar.

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2013 in review

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A San Francisco cable car holds 60 people. This blog was viewed about 1,100 times in 2013. If it were a cable car, it would take about 18 trips to carry that many people.

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O QUE ACONTECEU A HELENA IGNEZ?

Ensaio publicado no livro À margem do cinema (1986): revisto e atualizado.

Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969), Foto de Peter Overbec.

Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969), Foto de Peter Overbec.

Certa vez, Nelson Rodrigues proferiu um oráculo: “Uma Helena que também é Inês dá o que pensar. O nome duplo faz supor uma predestinação. Que vínculo tênue, misteriosíssimo, pode ligar a artista da capa a dois símbolos femininos eternos? Não é por acaso, não é por capricho, que uma mulher se chama, ao mesmo tempo, Helena e Inês. Há um apelo e repito: um apelo obsessivo e mortal em cada um desses nomes. Temos Helena que foi amada por um povo, e temos Inês, que foi amada por um homem. Assim, a artista da capa leva na carne e na alma dois nomes tristes – como um presságio, como um destino”.

O oráculo pode ser um exagero típico de Nelson Rodrigues, mas o fato é que Helena Ignez – uma atriz maravilhosa, lançada por Glauber Rocha em O pátio (1959) e que deu vida a toda uma fase do cinema brasileiro – sofreu uma crise, abandonou a carreira em 1975 e passou a percorrer um estranho roteiro. Esse roteiro começa em Nova Iorque, passa por Bari e Berlim, continua pelo Marrocos e por outros países do Saara, chega a Paris e termina na Bahia. Por que ninguém, por tantos anos, se interessou por seu destino? Escassas e desconexas eram as informações que nos chegavam sobre a musa do Cinema Novo que se tornou, depois, a musa do Cinema Marginal.

Um texto de Glauber Rocha assim a definiu: “Intelectual de classe média, estudante de Direito e de Teatro, casada com Glauber Rocha, cronista social e animadora de TV, candidata derrotada a Miss Bahia, bonita, elegante, loura, fuma, não sabe dirigir, úlcera, ligeiramente nervosa, radical com a mediocridade, saudosa da burguesia do Yatch Baiano, que largou para casar comigo – artes, letras, teatro, jornalismo, cinema, televisão, política. Nasceu Paloma [Rocha], e Helena não trabalhou em A cruz na praça, não porque estivesse grávida, mas porque não tinha papel para mulher”.

Em 1966, Helena Ignez estava no auge de sua beleza e de sua carreira. Num recorte de jornal desse ano, li uma breve declaração da atriz: “Sou gulosa, gosto de amor e das viagens. Também gosto de botar o nariz onde não sou chamada… O Cinema Novo é a minha paixão”. Ela lançava, então, o “terno de minissaia”, que chamou a atenção dos jornalistas que a receberam nas redações para ouvi-la falar de seu novo filme: O padre e a moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade. Cobiçada por Glauber Rocha, este a seduziu no alto de um morro. Nessa cena cinematográfica da vida real, presumivelmente patética, o cineasta enlaçou a atriz, estimulado por um pensamento que aumentava seu gozo: “Eu possuo a mulher mais desejada da Bahia!”.

Assim, de mulher amada por um povo, Helena Ignez passou a mulher amada por um só. Mas o desejo de Glauber por Helena alimentava-se do desejo coletivo, de uma soma abstrata de outros desejos masculinos. Não era um puro desejo pelo corpo de Helena, mas um desejo intermediado pelo mito potente da mulher sex-symbol. Contudo, Helena Ignez, que se apaixonava pela inteligência e só depois pelo corpo de seus homens, não podia satisfazer-se em ser amada como um símbolo. E concebeu a ideia da traição.

Abandonou Glauber Rocha e tornou-se a mulher de Julio Bressane e, depois, de Rogério Sganzerla, a quem, desde então, se manteve fiel (ela teve com Sganzerla mais duas filhas: Sinai Sganzerla e Djin Sganzerla). Já casada com Rogério Sganzerla, Helena Ignez foi “apresentada” por ele ao Pasquim como uma “revelação” no papel da bela favelada Ângela Carne e Osso em seu novo filme, A mulher de todos (1969), numa entrevista que começava com o jovem cineasta atacando o Cinema Novo como um movimento ultrapassado e reacionário. Helena tinha ido fazer a entrevista “disposta a mentir bastante”, mas logo desistiu, afirmando que todos aqueles jornalistas já sabiam de sua vida através de Luiz Carlos Maciel, e que seria inútil mentir…

Amada por Glauber, símbolo do Cinema Novo, como um símbolo sexual, Helena Ignez, ao tornar-se mulher de Júlio Bressane e, depois, de Rogério Sganzerla, símbolos do Cinema Marginal, realizou uma perfeita traição simbólica, que atraiu a vingança ideológica dos seguidores de Glauber Rocha. O ódio assassino dos sacripantas recaiu sobre a ex-musa do Cinema Novo[1], agora “vendida aos inimigos do cinema brasileiro”[2]. Uma batalha na guerra entre os machos do Cinema Novo e do Cinema Marginal teria sido então travada no corpo frágil de Helena Ignez. Tarde da noite, uma aranha negra [Guará, claro] me contou essa história de horror:

“Depois de separar-se do Glauber e tornar-se, primeiro, mulher do Bressane e, depois, do Sganzerla, Helena Ignez começou a ser difamada pelos ideólogos do Cinema Novo. Eles espalharam a história de que Helena Ignez tinha um nariz muito grande e que, com aquele nariz, ela nunca seria uma estrela. A história chegou aos ouvidos de Helena que, ao invés de rir dela, começou a olhar-se mais ao espelho. Aquilo ficara na sua cabeça. Seu nariz passou a ser o centro das atenções. Até que, tomando uma decisão radical, ela se submeteu a uma cirurgia plástica. Mas a operação não foi bem sucedida: depois de cortado, seu nariz ficou pequeno. Aqueles mesmos ideólogos começaram, então, a espalhar a história de que Helena tinha um nariz muito pequeno e que, com aquele nariz, ela nunca seria uma estrela…”

A crer nessa história, Helena Ignez pagou caro a aventura da traição: teve a face mutilada, a carreira cortada. Foi difamada e esquecida: ficou enterrada viva de 1975 até 1986. Em 1983, contudo, uma amiga enviou-me o programa de O belo indiferente, o monólogo de Jean Cocteau montado no Teatro Castro Alves, na Bahia, que trouxe Helena Ignez de volta ao palco, por apenas três dias. O folheto revelava que Helena dedicava-se ao estudo do Tai-Chi-Chuan e fazia vagas referências a buscas místicas e espirituais.

Três anos depois, Helena Ignez ressurgiu em Nem tudo é verdade (1986), de Sganzerla, que mais tarde a escalou para outro papel em Perigo negro / Oswaldianas (1992). Helena ganhou em seguida um papel pequeno na minissérie Tereza Batista (TV Globo, 1992); e, com uma crueldade a Billy Wilder – ou a Robert Aldrich – Guilherme de Almeida Prado fez a estrela underground ressurgir na tela como uma perigosa assaltante, que era logo assassinada, em Perfume de gardênia (1992). Em 1997, seguiram-se participações nos programas de TV Terra e Você decide. Anos depois, Helena Ignez assumiu a direção do curta-metragem A reinvenção da eua (2003), a partir de uma instalação de arte pública de Vito Acconci em São Paulo.

A morte de Sganzerla, em 2004, parece ter liberado Helena Ignez de algumas amarras: ela se sentiu segura para seguir sozinha e afirmar-se não apenas como herdeira legal do marido cineasta, conservando e divulgando sua obra, mas também como sua herdeira artística, tornando-se a “nova Sganzerla” do cinema brasileiro – dirigindo filmes dentro da estética que ele criou e que ela tanto amava, e acabou por assimilar.

Em sua produtora, a Mercúrio, Helena Ignez finalizou A miss e o dinossauro (Brasil, 1970-2005) para a homenagem a Sganzerla no Festival de Turim: ela registrara em super-8 o churrasco de despedida dos cineastas e atores da Belair – a produtora criada por Bressane e Sganzerla que, entre fevereiro e maio de 1970, realizou sete filmes, todos interditados pela censura da época – um dia antes de partirem para o exílio.

A atriz-diretora lançou, em seguida, Canção de Baal (2006), a partir da primeira peça de Bertolt Brecht, onde Baal é um poeta violento de apetite insaciável e disposto a corromper todos à sua volta: na adaptação de Helena Ignez, o herói é “o intelectual anárquico que se recusa a ser enquadrado”. Neste musical autoral a Sganzerla, com uma câmera que cria visualidades bizarras, o outsider Baal, vivido pelo artista multimídia Carlos Careqa, é um fracassado que todos adoram e que não se vende em troca da ascensão social. O filme é uma paródia sobre o machismo, “esse cancro da sociedade”. Produção caseira (realizado na fazenda de Helena Ignez em Bragança Paulista), o filme foi premiado no Festival de Trieste (Itália). Há, sem dúvida, uma exaltação crítica de Glauber na figura de Baal.

Helena Ignez atuou no papel de uma bruxa em A encarnação do demônio (2008), de José Mojica Marins e, em seguida, lançou Luz nas trevas: a revolta de Luz Vermelha (2010), a continuação de O Bandido da Luz Vermelha, a partir de um imenso roteiro no qual Sganzerla trabalhou de 1992 a 2004. Filmá-lo tornou-se a obsessão de Helena Ignez. O papel de Luz Vermelha (Paulo Villaça) foi assumido por Ney Matogrosso: trinta anos depois de aterrorizar a burguesia paulistana, descobrimos que o Bandido fingira sua morte, permanecendo vivo na prisão, onde lê Kant e Nietzsche nu em pelo. Ele descobre que possui um filho, chamado Tudo ou Nada (André Guerreiro Lopes), ligado à jovem Jane (Djin Sganzerla) – um casal que revive a relação tumultuada que Luz Vermelha mantinha com Janete Jane. Helena Ignez, que dirigiu o filme com Ícaro Martins (que reclamou de sua exclusão nas premiações em festivais, embora o filme seja claramente uma produção da família Sganzerla), também desempenha o papel de Madame Zero.

Mais recentemente, a própria Belair ganhou um documentário que recupera seus mitos (Bressane, Sganzerla, Helena Ignez, Maria Gladys e Guará): Belair (2001), de Bruno Safadi e Noa Bressane. Renascida das cinzas, podendo rodar o mundo com os filmes restaurados de Sganzerla e tendo seus próprios filmes premiados e a carreira homenageada no Festival de Fribourg, na Suíça, Helena Ignez superou o destino trágico ao qual o delírio político de um grupo de machistas do cinema brasileiro quase a fez sucumbir: a musa do Cinema Novo e do Cinema Marginal dos anos de 1950-1960, desencarnada das velhas guerrilhas de seus homens pela amizade dos filhos mistos dos dois grupos, pode sentir-se, com os elogios que passou a ganhar da crítica, novamente amada.


[1] Nos filmes A grande feira (1961), de Roberto Pires; Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias; O grito da Terra (1964), de Olney São Paulo; e O padre e a moça (1966), de Joaquim Pedro de Andrade.

[2] Para os quais ela atuou em: Cara a cara (1967), de Júlio Bressane; Os marginais (1968), de Moises Kendler e Carlos Alberto Prates Correia; O engano (1968), de Mario Fiorani; O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla; Um homem e sua jaula (1969), de Fernando Campos e Paulo Gil Soares; A mulher de todos (1969), de Sganzerla; A família do barulho (1970), de Bressane; Barão Olavo, o horrível (1970), de Bressane; Copacabana mon amour (1970), de Sganzerla; Cuidado, Madame (1970), de Bressane; Sem essa, aranha (1970), de Sganzerla; Os monstros de Babaloo (1971), de Elyseu Visconti; Um intruso no paraíso (1973), de Heron D’Ávila; e Carnaval de lama (1975), de Sganzerla.

Os números de 2012

Os duendes de estatísticas do WordPress.com prepararam um relatório para o ano de 2012 deste blog.

Aqui está um resumo:

The new Boeing 787 Dreamliner can carry about 250 passengers. This blog was viewed about 1.100 times in 2012. If it were a Dreamliner, it would take about 4 trips to carry that many people.

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GUARÁ NO TÚMULO DE OSCAR WILDE

GUARÁ PRESTA HOMENAGEM A OSCAR WILDE.

CEMITÉRIO PÈRE LACHAISE, PARIS, 1975.

O REGISTRO FOTOGRÁFICO É DO CINEASTA IVAN CARDOSO.

Paris, 1975: Guará no túmulo de Oscar Wilde. Foto de Ivan Cardoso.

Paris, 1975: Guará no túmulo de Oscar Wilde. Foto de Ivan Cardoso.

Paris, 1'975: Guará no túmulo de Oscar Wilde. Foto de Ivan Cardoso.

Paris, 1975: Guará no túmulo de Oscar Wilde. Foto de Ivan Cardoso.

ROBERT DE NIRO E GUARÁ

Nesta interessante entrevista, Pedrinho Aguinaga recorda sua vida de luxo em meio às celebridades do jet-set internacional, nas festas intermináveis dos anos de 1970, quando ele foi eleito “o homem mais bonito do Brasil” – festas que começavam  no Rio de Janeiro e terminavam em Nova York. Um de seus encontros foi com Maria Callas, Pier Paolo Pasolini e Franco Rossellini, o produtor de Teorema (que, num lapso, ele confunde com o diretor), logo após as filmagens de Medea, também produzido por ele. Gostaríamos de saber um pouco mais sobre essa noitada, mas Jô Soares não se aprofunda nas perguntas. A certa altura (14:10), Aguinaga dedica uma lembrança ao “querido ator Guará Rodrigues, o maior fã de Robert De Niro”. Na memória que a distância do tempo mescla à fantasia, o Guará de Aguinaga levaria sempre consigo uma foto autografada de De Niro (“dedicada ao meu amigo Guará”) para mostrar a todos os que  cruzavam seu caminho:

Programa do Jô

Como o Programa do Jô estava focado nos encontros de Aguinaga com os famosos (e especialmente com as famosas que ele “comia”), a foto de De Niro com Guará não foi exibida. Mas talvez alguns cinéfilos ainda se lembrem de tê-la visto publicada na revista Set. Quando eu ali colaborava com a coluna ‘Tempos modernos’,  cedi a foto que Guará me dera para o editor, Eugênio Bucci, que a publicou numa nota engraçada, observando a aparência de “farofeiro” de De Niro.  Eu não sabia que a foto havia sido batida pelo cineasta Neville d’Almeida, outro grande amigo de Guará, quando o ator americano passava alguns dias em Trancoso, na Bahia, em abril de 1987.  Mas quando Neville viu a  foto publicada, telefonou-me esclarecendo sobre sua autoria. Segue aqui então a imagem com os créditos corretos:

Guará e Robert De Niro. Foto de Nevlle D’Almeida.

SÔNIA BRAGA E GUARÁ

Este misterioso fotograma chegou-me pelo sobrinho de Guará, Marcelo La Onda, que soube me dizer apenas ser uma imagem de Guará com Sônia Braga. Foi o próprio Guará quem lhe  confiou a relíquia, estando certificada assim sua autenticidade. No fotograma, Sônia Braga, com um dos seios de fora, faz um carinho em Guará enquanto esse bate uma claquete. Na claquete um garrancho parece formar a palavra “Eros”.  Guará fez três filmes com Sônia Braga: A dama do lotação (1978), de Neville D’Almeida, rodado no Rio de Janeiro, e onde – segundo Guará me contou – foi assistente de direção, não creditado; Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor, também rodado no  Rio de Janeiro, onde foi um carniceiro do IML, guiando cadáveres à maneira de um guarda de trânsito, nostálgico de um Brasil menos industrializado; e Moon over Parador (Luar sobre Parador, 1988), de Paul Mazursky, rodado em Ouro Preto, e onde realizou seu sonho de contracenar com Richard Dreyfus, na época o ator americano contemporâneo que mais admirava. Por Sônia Braga parecer muito jovem na foto, por extravasar erotismo e por Guará estar a bater a claquete, no papel de um assistente de direção, parece-me que o fotograma data das filmagens de A dama do lotação (1978).

SESSÃO DE GUARÁ, LADRÃO DE ESTRELAS

Amigos,
convido a todos para as exibições dos filmes
Guará Ladrão de Estrelas
e
Diamante Devaneio ao Éter
conforme link abaixo.
Abraços,
Fábio
http://mostradecinemaeci.blogspot.com/2011/11/encerramento-da-i-mostra-de-cinema.html

GUARÁ, O CRIMINOSO IMAGINÁRIO

Guará em São Paulo. Foto: Luiz Nazario.

Este ensaio foi publicado na primeira edição de meu livro Da natureza dos monstros, Edição do Autor, São Paulo, 1983, p. 35-44. O ensaio incluía uma filmografia parcial, que suprimi aqui, por estar então ainda incompleta e porque devo publicar em breve a filmografia completa de Guará. O texto foi também revisto e acrescentado de alguns parágrafos.

O crime é a pedra lançada no charco estagnado. O detetive faz o diagnóstico. O seu trabalho é estudar as rugas à superfície da água e descobrir a pedra que a perturbou.

Alfred Hitchcock

Numa sociedade criminosa é preciso ser criminoso.

Marquês de Sade

Em 1979, reconheci, durante uma pré-estréia, uma sombra que me era familiar: barbudo, vestindo uma camisa florida, lembrava-me o ator de Memórias de um estrangulador de loiras. Na noite seguinte, tornei a encontrá-lo no lançamento de um disco. “Você não é o estrangulador de loiras?”, perguntei. “Sou eu mesmo”, ele respondeu. Trocamos algumas palavras e ele pareceu entusiasmado: “Finalmente encontrei alguém no meu nível”, revelou a um amigo, tomando dele um maço de cigarros, no qual anotou meu telefone.

Guará não me telefonou: encontrei-o novamente por acaso: estava de viagem e deu-me entradas para ver A opção. Na saída do auditório, vi-me cercado pelos aleijados, prostitutas e marginais que compunham o elenco do filme de Ozualdo Candeias. De volta a São Paulo, Guará ligou-me insistindo para que eu fosse assistir às conferências de Buckminster Füller sobre o futuro da humanidade. “Quem é Buckminster Füller?”, quis saber. “É um gênio que inventou o domo geodésico”. Fui por curiosidade: numa das conferências, a loira que ajudava o “gênio” com os microfones chegou a irritá-lo tanto que ele a expulsou do palco aos berros de “não sei o que as loiras têm a ver com a física de Einstein!”. Tratava-se de um paranóico, cujo pensamento evoluía em fórmulas como: x é y; z é r; portanto, f é k.

Outra noite, Guará convidou-me para assistir à projeção de uma série de slides que fizera em Goa. As fotografias eram muito bonitas, especialmente uma, em que ele aparecia nu ao lado de um grande barco, como um Robinson Crusoé em sua ilha de areia cercada de azul por todos os lados. Mostrou-me seus filmes, seus quadros. Ele se objetivava nas coisas e se exibia através delas, não de uma forma neurótica, mas para que gostássemos dele através de suas objetivações. Entregava-se totalmente sem pedir nada em troca – uma forma pura de generosidade, diferente daquela em que há uma recuperação do elogio às objetivações na forma mesma da exibição.

O cinema e o sexo eram os “territórios” de Guará. Logo me contou sobre um amigo seu que conseguia sorver, deliciado, o esperma do próprio falo; sobre as aborrecidas bacanais que freqüentara com outros artistas brasileiros em Londres; sobre o gosto esquisito de um famoso empresário que sentia prazer quando defecavam em seu rosto; sobre conhecidos seus que se estimulavam sexualmente com parceiras aleijadas. Embora possuísse uma sensibilidade feminina, tudo em Guará era exacerbadamente masculino. “Gosto das coisas viris”, disse-me noutra ocasião, tentando esclarecer sua misoginia, “mas não posso odiar as mulheres porque tenho mãe, irmãs, amantes”. Ele também manifestava, em relação aos homossexuais, uma espécie de rancor sádico. Odiava travestis e lésbicas em geral, e quando soube que eu gostava de Ângela Rô Rô, disse-me que ela era um câncer que se alastrava pelo mundo. Como eu discordasse, afirmou: “Mas ela também é minha amiga”. O que Guará não conseguia destruir, anexava.

Ele tinha paranóias singulares, como a de nunca entrar num cinema antes que as luzes se apagassem, e de se ver desdobrado, algumas vezes, andando pelas ruas. Justificando sua impossibilidade de ganhar dinheiro alienando seu corpo, afirmava ter resolvido prolongar um pouco sua adolescência, tendo já passado dos quarenta. E, assim, Guará carrega, no corpo e na alma, as cicatrizes e poluições de crimes perpetrados ao longo de uma existência underground. E é como se uma aura o protegesse das deformações que a matéria histórica inflige à essência humana. Não foi engajado pelos acontecimentos, sexualizado pelo sexo, drogado pelas drogas, mistificado pelo oriente, glamorizado pelo cinema. Talvez a própria morte não encontre nele certas repercussões naturais.

Convivendo com a bestialidade – o mesmo à vontade de James Dean tocando tuba para suínos exibe Guará na porcaria do cinema nacional – conserva a pureza original de um recém-nascido. Não a de um recém-nascido comum: a pureza original de um recém-nascido Frankenstein. Pois é com inocência que ele sonha com um apocalipse nuclear para salvar a humanidade, que ele suspeita as mulheres de serem a escória da sociedade, que ele admira os vilões da história e confia na inteligência das massas. Se Guará viesse à rua de revólver em punho, atirando ao acaso, tanto quanto possível, sobre a multidão, realizaria o mais simples dos atos surrealistas, tal como o definiu Breton, e escaparia ileso, como o poeta assassino de Buñuel, distribuindo autógrafos após a condenação do tribunal. Toda realidade que este duende toca transforma-se em imaginação.

Em Guará, a nostalgia de Édipo vem em ondas de ira contra o imperialismo americano (o pai) e de paixão pelo cinema americano (a mãe), no qual “mama”, como declarou certa vez. Trata-se de um artifício da espécie de paranóia com que se arma a criatura do Dr. Frankenstein contra a paranóia dos homens: vendo o mundo com os olhos puros de um esquizofrênico, adere à imagem monstruosa que dele fazem os humanos, sucumbindo à vontade de poder. Todos os papéis que Guará interpreta passam esta imagem de líder, chefe, dono ou patrão – de pai – que ele acaricia inconscientemente.

O olho de Deus fixado em Caim, o olho de Cristo sobre todas as camas, o olho da televisão em todas as salas, o olho das lanternas em todas as sombras, o olho dos holofotes em todas as fugas, o olho mágico em todas as portas, o olho dos semáforos em todas as esquinas, o olho dos olheiros em todas as celas, o olho do vizinho atrás de todas as janelas, o olho-de-lince no emblema dos detetives particulares… são tantos os olhos que vasculham e condenam, de um ponto de vista transcendental, que através dessa luz a culpa se infiltra no transgressor potencial ou efetivo das normas até os ossos – ameaçando-o, para que não tente; deformando-o, para que se arrependa: para que não pense mais “nisso”. Acossado, e para manter-se gratificado, Guará abole, num ato de vontade, o princípio de realidade. Filho ingrato do liberalismo, dispensa a legalização de seus crimes: não lhe faz falta a permissão do pai – que imaginariamente matou – para aquilo que não concebe como um crime – e que realmente pratica.

O criminoso imaginário é indiferente aos destinos da humanidade: ilude-se com a morte do pai como eliminação da paternidade. Culpa ora o social, ora o feminino, pelo que é – mas gosta muito de ser o que é para ser capaz de mudar. Há suficientes bodes expiatórios para mantê-lo na sua querida irresponsabilidade. Defende-se contra inimigos imaginários: dá razão a todos, para guardar a sua; sabe-se genial e diz-se um imbecil; oscila rapidamente do orgulho à vergonha: não se perdoa o ter abandonado a subjetividade no instante mesmo em que a descobriu; não aproveita, tampouco, os trapos que dela conserva. Porque faz o que é proibido ele se acredita livre. Mas há grandes regiões de prazer fatais ao desejo; caindo na armadilha do sado-masoquismo, o criminoso imaginário tende à degradação do prazer. Enquanto se mantém imerso no imaginário, protegido em seus limites, não pode cometer o crime perfeito: este só existe a partir do confronto com a lei, realiza-se a despeito e com o concurso do princípio de realidade existente, para manter sua lembrança no fim da execução do único crime que compensa (o inconsciente só é simpático ao criminoso perfeito e ao criminoso morto).

A aventura do homem livre – o criminoso perfeito – é solitária; seu projeto é matar a paternidade, mais do que o próprio pai. Para tanto, não pode alimentar ilusões; só conta com uma chance e nos seus cálculos entra o destino de toda a humanidade. Sem superego, não precisa superar complexos; aceita o desafio da realidade – sabe-se vencedor. Ladrão que faz a ocasião, é o ator perfeito representando a farsa da legalidade para preservar da punição todas as suas transgressões. A natureza do crime perfeito é qualitativamente diferente da do crime comum. Também não é aquele que jamais será descoberto, mas o que não o foi ao seu tempo, que só se dá como perfeito no futuro, quando seu mecanismo é revelado e demonstrado como e por que não poderia ter sido descoberto.

Assim, crimes perfeitos são as obras de arte que permanecem, as relações de amor e amizade que resistem ao mundo, os acontecimentos que fazem a humanidade sem tempo ou lugar explodir de emoção. Nada de limpo nestes crimes: através deles, o sangue escorre como através de qualquer outro. A diferença é que não escorre em vão. O crime perfeito manifesta o que não se esmaga impunemente: sua sobrevivência através das catástrofes, dos acidentes, das agressões, do terror e do prático-inerte é a possibilidade da revolta contra a história. Por isso o investigador comum jamais poderá capturar o criminoso perfeito: vivem num mesmo espaço, mas não num mesmo tempo. O local do crime pode ser descoberto: seu tempo e agente, só mais tarde e tarde demais. É este jogo com o tempo que conta para a perfeição de um crime.

A instituição policial postula a inexistência do crime perfeito: o vazio da captura seria apenas devido à falta de investigação ali onde o culpado escorregou das malhas da lei. Esta noção vulgar prepara a necessidade de vigilância e coerção totais. Mas a ingenuidade do investigador comum é flagrante: a investigação perfeita – que ele não ousa realizar – seria, ela também, um crime perfeito, e não o triunfo da morte, como queria o pobre diabo. Ao contrário de si, o investigador perfeito tem plena consciência de sua criminalidade: age em nome de uma lei a cujo sentido é alheio; é na obra de investigação que reside seu desejo. Difere do criminoso perfeito por ser ativo, mas ambos inutilizam Deus arrebatando-lhe o poder de criar. O investigador comum também queria imortalizar-se, mas aderindo a um sistema que garante ser imortal; precisa de Deus para dele se aparentar, conservando a transcendência em sua imanência de subhomem. Somente o conceito radical da inexistência de Édipo substitui os discursos parciais da sociedade pelo discurso universal da humanidade.

O sonho de Guará teria sido o de ser um filósofo da matemática: a família, essa gostosa casa de chocolate onde prendem e engordam as crianças para a sopa da velha bruxa, destruiu o seu sonho – mas não a lembrança de uma possível felicidade. As reminiscências de um futuro pleno, o olhar atirado para longe, esta sede de absoluto permanecem: Guará encarna, depois de Greta Garbo, o mito “decadente” da diva: vem desta encarnação a aura de Guará, que ele inconscientemente resume num pensamento chave: “O homem é o que é”. Este princípio absurdo (já que o homem é o que faz) protege-o contra as mentiras de sua vida. Sendo o que sonha, não importa o que realiza: filmes, crimes, contatos – são fantasias da realidade.

Ao invés de transformar-se sem cessar no embate com a realidade, Guará escolheu habitar no imaginário, representando na vida e vivendo na representação. Como Anna Magnani, em Le Carrosse d’Or, de Jean Renoir, poderia dizer: “Onde termina o teatro? Onde começa a vida?” Ele não se cansa de ver e rever os filmes que ama – às vezes vinte vezes – para ingressar, imaginariamente, naquele universo perfeito. Noutro passe de mágica, inclui em seus filmes cenas de filmes clássicos, para obter a sensação de neles ter atuado. Assistindo ao mais insignificante espetáculo, arranja para que não seja distraído, irritando-se com a presença de espectadores ao redor, cujos sinais de vida quebram a ilusão que alimenta de estar na imaginação como se estivesse na realidade, fundindo-se na forma, longe do ridículo do mundo: Guará assiste a filmes como quem faz amor.

Homem imaginário, Guará compõe diariamente as mais díspares personagens: existencialista, místico, sonhador, católico, terrorista, fauno, hindu, feiticeiro, nudista, vingador, solitário, fugitivo, marginal, trabalhador. Ele se lança, estático, em projetos de vida que se multiplicam sem nunca realizar-se, numa empresa próxima à de Baudelaire que, no entender de Sartre, avançava em ondas, sem um fim unificador. Como Guará mesmo formulou: “Minha vida é um filme seriado”. Seus atos – melhor dizendo, seus gestos amplos e indolentes – formam uma floresta virgem de projetos.

O que há de comum em todas as personificações aleatórias de Guará é que, seja onde for, ele está sempre em comércio com a carne humana: nunca em uma relação, nunca alimentando um desejo, mas alimentando-se da carne de seus semelhantes. Não da carne “sadia”, mas da carne “podre”. Seu personagem só pode exprimir-se eroticamente pela supressão do erotismo: estrangulando loiras, espancando jesuítas, prostitutas e homossexuais, chorando ou guiando cadáveres, violentando homens e mulheres, extorquindo e matando machos, amassando ou esmagando testículos, conspurcando ou mutilando órgãos humanos. Ao repudiar a humanidade, Guará assume a identidade do monstro – para melhor comer seus iguais.

Por sua visão original e suas opiniões radicais, Guará é freqüentemente criticado; ele concorda em primeira instância com o interlocutor, mas apenas para descarregar seu rancor na primeira oportunidade: não se defende; mas depois de legitimar a crítica, pulveriza o autor com evidências objetivas. Parece dizer: “É certo o que diz… Mas veja como você é um imbecil”. Guará forja sua segurança com golpes baixos, rendendo indiferença ao sangue dos outros. Seu temperamento esponjoso assimila a negação, mas só por um momento. O suficiente para que, recuperando a alegria, possa descontrair-se, integrando a contradição sem resolvê-la. Torna a Terra um deserto para realizar-se sem o concurso do mundo. Nada escapa de seu invólucro natural: guarda sua essência em plena troca; sempre aquém ou além do que o ocupa ou se ocupa, nada penetra e por nada é penetrado. O acúmulo dessa essência torna-o cada vez mais único e próximo das divindades.

Há, no entanto, o momento da recaída: quando está sendo filmado. A máquina que registra seus movimentos possui Guará enquanto ele representa; possuído pelo aparelho ao qual concede vida pelo olhar que lhe dirige, pode finalmente possuir a si mesmo. Beijando uma coadjuvante, Guará não lhe dá nada; um olhar direto para a câmera revela que ele está concentrado num outro objeto: o espectador ausente – ele mesmo. Guará olha para a objetiva/espelho à procura de Guará, para possuí-lo, para ser por ele possuído, através da objetiva/falo.

Ver a si próprio numa tela é uma experiência muito forte; Guará fica transtornado, quase não suporta, chega a abandonar o auditório. Neste estado, recupera a humanidade renegada. Mas se só por este momento de verdade é superior a todos os babacas que se anulam diante do mundo, não é superior ao mundo que pensa poder anular: o caráter imaginário de seus crimes bloqueia sua carreira. Os filmes que Guará imaginou não foram realizados; os filmes que realizou não foram terminados; os filmes que terminou não foram exibidos; os filmes exibidos saíram logo de cartaz. Narciso da noite, Guará padece a maldição do vampiro: mira-se no espelho sem encontrar seu reflexo. Suas fotos são freqüentemente publicadas sem legenda e seu nome passa despercebido entre os letreiros dos filmes que ajudou a dirigir. Mas os que o conhecem e amam não se desesperam. Sabem que um dia ele cometerá um crime perfeito. Não foi para isso, afinal, que se conservou intacto?

(São Paulo, 1983).

GUARÁ, UM FILME INACABADO

Guará, por Antonio Guerreiro.

Depois de gravar, com Guaracy Rodrigues, o Guará, os vídeos Sexo-verdade (2001) e Os prisioneiros do planeta Ornabi (2002-2003), eu iniciei na Escola de Belas Artes um projeto de recuperação da filmografia desse excepcional ator mineiro, cuja carreira pude acompanhar de perto ao longo das últimas décadas. O projeto Guará: o criminoso imaginário recupera parte da memória visual do cinema brasileiro na pessoa de um dos mais ativos figurantes de nossas telas. O projeto comporta a edição de um livro-DVD sobre Guará, incluindo os roteiros escritos ou co-escritos por Guará, todos inéditos; o ensaio Guará, o criminoso imaginário (1982) revisto e ampliado; a entrevista A representação segundo Guará (1985) realizada através de uma troca de cartas com o ator; o vídeo Entrevista com Guará (2004), realizado pouco antes de sua morte; um clipping de imprensa cobrindo sua estranha carreira; sua filmografia completa; por Guará; o book intitulado Anatomia de um monstro, composto por cerca de 70 fotografias em cor e p&b; a inédita novela autobiográfica Memórias de um hóspede; e uma coletânea das aparições de Guará no cinema brasileiro.

Nascido em Belo Horizonte, Guará não tinha residência fixa, mas podia ser encontrado em toda parte: ele estava onde as coisas aconteciam. Depois de estudar no Centro de Estudos Cinematogrçficos, acompanhando o primeiro curso de cinema na PUC de Minas, ganhou uma bolsa para o curso de cinema ministrado por Arne Sucksdorff, no Rio de Janeiro, promovido pela UNESCO e pelo Itamarati, e que formou Arnaldo Jabor e outros diretores. Guará iniciou sua carreira no mundo do cinema como assistente de direção de Roberto Santos, e logo passou a integrar a equipe de Julio Bressane, como técnico e ator em uma dezena de produções da Bel-Air.

Desde então, filmes, sonhos e viagens mesclaram-se na trajetória de Guará pelo mundo. Na Paris da nouvelle-vague, conviveu com François Truffaut e Jean-Luc Godard. Na Roma da dolce vita ia ao cinema na companhia de Joe d’Alessandro e Maria Schneider. Na Amsterdã dos hippies, embarcou nas sessões malditas do Milkway e na festa dos tolos em pontes medievais e jardins de papoulas, dançando com a cantora Nico depois de assistir a Nasce uma estrela. Na swinging London, buscou inspiração junto a Alfred Hitchcock nas filmagens de Frenesi e estrelou Memórias de um estrangulador de loiras, o filme mudo de Julio Bressane que fez sensação em sua estréia no Eletric Cinema.

Depois, reencarnando Sabu no Oriente, Guará flutuou com o Taj Mahal na palma de Deus, e filmou, entre 1970 e 1971, suas viagens em jangadas de junco e tapetes voadores, no primeiro road movie brasileiro: Boom Shankar, rodado em 16mm com uma câmera Éclair ACL e um gravador Nagra 4, em pleno movimento underground, na célebre “rota das drogas”, que ele seguiu desde Amsterdã até Goa, passando pela Turquia e pelo Afeganistão. Com uma pré-edição de Tony Nogueira, o filme foi o primeiro roadmovie brasileiro, um raro documento da época – cinema de poesia, erótico e experimental. Filmado há 27 anos, o material com 2 horas de filme 16mm positivo foi encontrado em 2000 dentro de uma mala de metal esquecida há tempos na casa de um amigo de Guará. Eu mantive o filme guardado à espera de um apoio ao projeto, mas Guará me pediu a mala de metal com os rolos de filme ao reencontrar um amigo disposto a ajudá-lo a editar o filme em São Paulo. Durante a edição Guará se desentendeu com o amigo e voltou sem a mala, que se encontra novamente perdida…

Na mesma época, Guará filmou cenas do cotidiano do Afeganistão e da Índia, em dois documentários para a BBC de Londres: Dogs Fights e Snake Charmeurs. E não se furtou a fazer figurações nos estúdios de cinema de Bombaim, aparecendo em dois filmes indianos cujos títulos nunca soube e cujos diretores jamais encontrou. De volta ao Brasil, Guará tornou-se o ator mais procurado para encarnar papéis de vilões, estupradores, assassinos, loucos e políticos. Curiosamente, foi no papel atípico de um psiquiatra, em Louco por Cinema, que ele ganhou, em 1994, no Festival de Cinema de Brasília, o prêmio Candango de melhor ator coadjuvante.

Nos últimos anos, Guará transformou-se numa personalidade cult contando entre seus admiradores com o ator Robert De Niro e o cineasta Paul Mazursky. Este realizou um velho sonho de Guará, reservando-lhe um papel em Luar sobre Parador onde ele contracenou com Richard Dreyfus, um dos atores que então mais admirava. As aparições de Guará em filmes undergound, hoje clássicos, são aplaudidas pelos espectadores do National Film Theater, em Londres; da Cinemathèque Française, em Paris; e até pelo Papa, na Cinemateca do Vaticano (claro: essa foi uma das histórias que o Guará me contou, sem se preocupar em entrar em detalhes).

Também nacionalmente, depois de longo esquecimento, Guará voltou a ser reconhecido: graças a leis de incentivo, o cineasta mineiro Fábio Carvalho destacou sua presença em O general e dedicou-lhe O lobo Guará; e os jovens cineastas Rafael Conde, Tiago Mata Machado, Patrícia Moran convidaram o ator para participar de suas produções, dentre as quais se destacou o divertido Samba-canção. Mas Guará ainda não teve sua carreira registrada em livro ilustrado, com sua filmografia completa.

Em quase vinte anos de pesquisa sobre Guará, acumulei histórias inéditas e imagens raras. Entre tantos casos de bastidores que Guará adorava me contar, lembro-me de uma bastante picante: um jovem ator amigo seu dissera-lhe que o pai dele arrumava garotos fortes e bonitos, de preferência negros, durante as filmagens de It’s all true, no Rio de Janeiro, para fazer amor com Orson Welles. Essa indiscreção confirmava um artigo escrito de forma cifrada por Gore Vidal sobre os subtons homoeróticos insinuados pelo barroquismo cinematográfico de Welles, e minhas próprias análises da perversão fílmica presente na escritura de seus filmes noir.

Já se editaram livros sobre grandes atores do teatro brasileiro, como Cacilda Becker, Marília Pera, Paulo Autran; a coleção Aplauso! é uma iniciativa louvável neste sentido; trata-se, agora, de recuperar a memória dos atores do cinema brasileiro e, no caso de Guará, dos figurantes capazes de sobreviver a todas as tempestades que se abateram sobre a indústria do cinema nacional, e que permanecem, a despeito de uma carreira multifacetada, desconhecidos do grande público. Guará, além de ser um dos mais ativos figurantes de nossas telas, seguiu a tradição de Wilson Grey, mas subvertendo as características do figurante, ao transformar-se – para os cinéfilos – na verdadeira estrela cult dos filmes em que aparecia, tal como o grande ator Desmond Llewelyn, o “Mr. Q” dos filmes de James Bond.

Nos últimos anos, Guará transformou-se numa personalidade cult no mundo inteiro, contando, entre seus admiradores, com o ator Robert De Niro e o cineasta Paul Mazursky. Este realizou um velho sonho de Guará, reservandolhe um papel em Luar sobre Parador onde ele contracena com Richard Dreyfus, um dos atores que então mais admirava. As aparições de Guará em filmes undergound, hoje clássicos, são aplaudidas pelos espectadores do National Film Theater, em Londres; ou da Cinematèque Française, em Paris; e até pelo Papa, na Cinemateca do Vaticano.

Guará sempre me telefonava, estivesse ele em Trancoso, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou São Paulo, para mantermos longas conversas sobre o horror em que se transformou o nosso mundo. Lembro-me de um desses telefonemas, do dia 2 de janeiro de 1995, quando Guará comentou comigo o que vira no dia anterior na TV:

– Ontem assisti à transmissão da posse do Fernando Henrique Cardoso. O apresentador da Manchete estava insuportável. Disse que seriam dados vinte e um tiros por cinco canhões. Isto queria dizer que quatro canhões dariam cinco tiros e um teria que dar seis tiros. Qual canhão seria? O da esquerda, o da direita, ou um dos três do centro? O locutor achava que deveria ser um dos três do centro, provavelmente o do centro mais à esquerda, mas ele não tinha certeza. Acreditava que sim, afinal eram cinco tiros a serem dados por cinco canhões, menos um, que daria seis tiros, e ele ficou refletindo sobre isso. Até que chegou um momento em que eu não aguentei mais e mudei de canal. Agora penso que deveria ter ficado ouvindo até o fim, para saber qual foi o canhão que atirou e se o repórter estava certo ou errado… e tenho a impressão de que ele contou de novo toda a história, do começo ao fim, comprovando suas hipósteses à luz dos novos fatos… Sim, eu deveria ter assistido à transmissão da posse até o fim, para saber até onde o reporter ia chegar!

Freqüentemente, lamentávamos a pobreza do cinema de nossos dias:

Guará: – Choro com alguns planos de Ford, de Hitchcock…

– E pensar que houve um Hitchcock no cinema, e que não haverá outro jamais…

Guará: – Ninguém que faça igual…

– Nem Spielberg, nem de Palma, ninguém entende que Hitchcock é mais que uma linguagem, é uma antropologia!

Guará: – Sem Hitchcock, a vida perdeu o sentido.

Tantas histórias… A convivência com Guará enriqueceu minha vida de muitos momentos mágicos. Ao mesmo tempo em que eu gozava esses momentos, sem poder compartilhá-los com ninguém, eu pressentia que nossos encontros memoráveis e nossas conversas repletas de absurdo e comicidade logo estariam perdidas para sempre, como cenas de um filme maravilhoso que somente eu pudera ver – sem poder gravar e exibir aos amigos, ao público, um filme que se apagava no instante mesmo em que eu o via, sem deixar traços. Por isso comecei a renir, enquanto ainda podiam ser recuperados, documentos, fotos e registros de uma existência mítica. Procurei capturar uma lenda viva em plena fuga, imprimindo na memória objetiva do mundo algo de efetivamente ilusório e essencialmente verdadeiro, que não pode ser fixado: a existência vivida como um sonho por um monstro sagrado de um cinema que nunca existiu.

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