A REPRESENTAÇÃO SEGUNDO GUARÁ

Guará em Trancoso. Foto: Dudi Gupper

Em 1980, imaginei um livro de entrevistas com Guará, a ser escrito pelo correio, sobre o tema da representação. Minha curiosidade foi maior que sua disposição, e nosso livro ficou reduzido a esta entrevista inédita (Luiz Nazario).  

LN: Em La Notte, Michelangelo Antonioni fez uma experiência com Jeanne Moreau: terminadas as cenas com ela, continuava a rodar o filme, registrando os momentos em que a atriz, deixando de ser a personagem, não era ainda a pessoa. Como um ator vive esses momentos? Que relação há entre a pessoa, a personagem e esse ser intermediário?  

Guará: Baseado na minha experiência, não existe esse ser intermediário. O que existe quando se termina um plano é a crítica do que se fez. Uma crítica quase técnica. O ser intermediário não passa de uma sofisticação de intelectuais europeus. Essa frase não tem nada de pejorativo, pois amo a sofisticação, a Europa em geral e as culturas italiana e francesa em particular. Agora, a relação entre a pessoa (ator/atriz) e a personagem é outro papo. Um papo nada sutil. É quase violento. A mim a personagem me possui inteiramente, com a força que o demônio possui Rosário, no filme que escrevi para o Neville D’Almeida, Piranhas do asfalto.  

LN: Quando a personagem o possui, como um demônio, é para que você se esqueça de seu corpo? Representar é uma forma de não assumir o corpo através de sua instrumentalização?  

Guará: Meu corpo nunca está em jogo, a não ser como manifestação sensual da personagem. Ao mesmo tempo, na imagem, o corpo é a única coisa que domino, isto é, que não me causa surpresa quando o vejo filmado, principalmente se ele é decomposto, quer dizer: close-up das mãos, da sola dos pés, dos órgãos sexuais, dos olhos, dos lábios fechados entre os quais surge a língua úmida, etc. Enfim, o meu corpo está sempre assumido, não penso mais nele, mas não o esqueço: ele já não me pertence, pertence à personagem. Fui chamado pelo meu amigo Gilberto Loureiro para fazer um corcunda no seu próximo filme. Aí, sim, meu corpo vai ser literalmente instrumentalizado – é uma caracterização. Estou pensando em algo assim como Charles Laughton em The Hunckback of Notre Dame. O corpo se transforma numa obsessão… Mas não se pode perder o humor, como Charles, naquele plano memorável dizendo: “I’m not a man, I’m not a beast”. Qual a sua formação de ator? Guará: Minha formação de ator é a forma-ação. A forma: o diretor, o diretor de fotografia, o figurinista, o cenógrafo, o script, a equipe enfim. À palavra “ação”, eu me transformo em ator. À palavra “corta”, volto a ser Guará (personagem/ pessoa/ ator).  

LN: Quais os seus atores preferidos?  

Guará: Richard Dreyfuss, Zbigniew Cybulski, Gérard Philipe e todos aqueles monstros sagrados do velho cinema americano: Bette Davis, Humphrey Bogart, etc. E também qualquer ator dirigido por Alfred Hitchcock, até mesmo Doris Day em The Man Who Knew Too Much. E Edgar Buchanan, o juiz de Guns in the afternoon, e também Warren Oates. De qualquer maneira, atualmente estou parado na de Richard Dreyfuss.  

LN: Quando veio a noção de representar?  

Guará: Creio que com a primeira mentira. Quando se mente é preciso elaborar, iludir, ser uma outra pessoa sem renunciar ao que você é. Depois, socialmente, a grande mentira, você tem que representar sempre.  

LN: A representação nasce na família – no teatro do pai e da mãe – ou num desejo constante de ser outro?  

Guará: O teatro do pai e da mãe, como casa de espetáculo, tendo eles como espectadores, é realmente muito interessante e incentivador para o jovem ator (o filho), mas sendo eles o espetáculo em si, é mais uma novela de Janete Clair do que teatro. Por outro lado, os pais, como diretores, são muito ditatoriais. O desejo constante de ser outro… isso não existe. Eu não desejo ser outro quando represento, eu quero ser eu mesmo enquanto outra pessoa. Quer dizer, eu quero me colocar no interior de outro ser (personagem) e o transformar para o bem ou para o mal.  

LN: Fale das suas decepções, no cinema, de ver sua imagem apreendida de forma diversa daquela que havia imaginado, da diferença que existe entre o sonho da representação e a sua realidade, da montagem enfim, que destrói… o quê?  

Guará: O cinema nunca me decepcionou como criação. Existe a decepção quanto às dimensões. Você sabe, o cinema tem a limitação das suas dimensões. Por outro lado, você idealiza, digamos, um plano que fez e, quando o vê, depois de um tempo, o tempo da revelação – revelação do negativo e revelação no sentido amplo –, você já amadureceu mais um pouco e pensa: “Isso poderia ser feito assim… de uma maneira mais perfeita”, ou “está tudo errado, não é nada disso”. Não se pode retocar, como na pintura, ou jogar fora ou rasgar, como se faz com uma fotografia. A perfeita representação ou a representação perfeita só existe em toda a sua sutileza na vida real. A cronologia é a montadora ideal. A montagem do cinema é arbitrária. Destrói a ordem interna do ator.

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